NOTAS SOBRE O COMPLEXO DE ÉDIPO
- Raquel Mazo
- 10 de nov. de 2024
- 43 min de leitura
BERENSTEIN, I. El Sujeto y el otro: de la ausencia a la presencia. Buenos Aires: Paidós, 2001. Cap. 1: Notas sobre el complejo de Edipo, pg 17-56.
Tradução livre do espanhol para a lingua portuguesa: Raquel Mazo
INTRODUÇÃO HISTÓRICA
Édipo parece ter sido personagem de um mito tradicional desde a época de Sófocles, que o retomou como tema da tragédia no século V a.C. No final do século XIX, sua leitura impressionou Freud, que por sua vez adotou esse mito para descrever um conjunto de emoções e inclinações na relação da criança com seus pais que constituem a base sobre a qual se constrói a personalidade.
A tragédia como gênero começou no final do século VI a.C., em Atenas, e deslocou a lírica e a épica, que eram dominantes até então. Estes últimos exaltavam e glorificavam os antigos valores do destino humano, determinados principalmente pelos deuses que dominavam o universo e eram considerados donos dos atos humanos e de seu destino pessoal, político e social. O homem não era responsável pelo que os deuses faziam por meio dele. Já a tragédia surgiu em decorrência do questionamento que o autor ou ator fazia de seus próprios atos, com o qual admitia que o homem era o responsável pelo que havia feito sem saber. Enquanto não soubesse, era considerado inocente, mas tornava-se culpado se soubesse. Produz-se então uma nova e desconcertante relação e ao mesmo tempo um conflito entre não saber e saber, ou melhor, entre não ter conhecido antes e saber hoje, portanto, entre passado e presente. O mundo do homem de repente foi dividido e ao mesmo tempo encontra seu eu dividido, como diríamos hoje. Ao conhecimento divino e enigmático dos deuses exposto no oráculo opõe-se a certeza do conhecimento humano a respeito de seus próprios atos. A partir de certo momento não pode deixar de saber; a responsabilidade e a culpa não pertencem mais aos deuses, mas ao próprio homem e é a ele que se dirige o castigo. Lévi-Strauss (1958) diz que o enigma é uma questão para a qual se postula que não há resposta. Há apenas interpretação, busca de significado. O enigma admite todo tipo de respostas e nenhuma o fecha, não esgota sua produtividade, é posto a produzir efeitos (Lewkowicz, 1997).
O grego fez ao oráculo uma pergunta que lhe pareceu verdadeira, dirigida aos deuses, em particular a Apolo, que respondeu através da cartomante e na forma de um enigma, que, embora verdadeiro, era incerto. A verdade é divina, mas primeiro a pergunta e depois, principalmente, o sentido da resposta é humana e tem dois momentos que produzem o efeito trágico. O primeiro momento ocorre quando a resposta do oráculo é interpretada, como fez Édipo em Delfos. Sua conclusão foi que, para não matar seu pai e não se casar com sua mãe, ele deveria se mudar de Corinto, de cujos reis ele acreditava ser filho. O segundo momento ocorre quando o significado do enigma é revelado, como ocorre no final de Edipo Rei. Há um paradoxo fundador aqui: ao interpretar mal o oráculo, o destino é cumprido. Se Édipo o tivesse interpretado corretamente, o destino não teria sido cumprido. Porém, caso isso ocorresse, os deuses não seriam verdadeiros, pois seriam alcançados pela interpretação humana. O oráculo se cumpre justamente porque o sujeito quer fugir de seu destino. Caso contrário, não seria cumprido. Aí está a tragédia. A responsabilidade não é pela pergunta que se faz, mas pela interpretação do enigma que surge como resposta. Há uma dupla cisão: entre a pergunta e o enigma e entre o enigma e sua interpretação. O enigma persiste, apesar das várias respostas possíveis. Há uma multiplicação de respostas e o enigma não pode ser respondido no sentido pleno de declaração da questão esgotada (Lewkowicz, 1997). O enigma provoca efeitos de interpretação e, nesse sentido, é inesgotável.
Há uma pergunta humana dirigida aos deuses e sua resposta é enigmática e é dada por meio de oráculos. Apolo fala através da cartomante em transe. Há um homem, que poderia ser Édipo, que vai ao oráculo com uma pergunta verdadeira; os deuses respondem através dele; essa resposta é enigmática e verdadeira, então o homem deve interpretar e dar sentido a essa verdade dita pelo oráculo.
No caso de Édipo, o destino é cumprido por sua má interpretação do oráculo. Se Édipo tivesse interpretado corretamente, ele teria impedido que o destino acontecesse, mas então os deuses teriam falhado, pois uma interpretação humana teria impedido que o destino acontecesse, e Édipo teria igualado ou superado os deuses. Eis o paradoxo: o destino tem de cumprir-se e cumpre-se porque os homens, como Édipo, querem evitá-lo. Esse é o cerne da relação angustiante entre atos e consequências. Essa concepção é típica da tragédia.
A má interpretação de Édipo pode ser devida tanto a um desígnio divino quanto a uma falha humana. Na tragédia, sempre coexistem duas ordens de razões: a má interpretação pode ser atribuída tanto aos deuses quanto aos homens. A verdade está permanentemente dividida porque o mesmo ato pode derivar ao mesmo tempo de causas humanas ou divinas. Quando Édipo acreditava que ele agia, os deuses agiam, e quando ele acreditava que os deuses agiam, ele agia. Também a Esfinge propunha um enigma. Sua correta interpretação é problemática porque admite diferentes formas. Diz-se que se fosse um verdadeiro enigma, Édipo não teria podido interpretá-lo. Acontece que o enigma era tal para todos aqueles que tentavam respondê-lo sem sucesso até a chegada de Édipo, que entrou em hubris (excesso), conseguiu por si mesmo saber além do que é possível sem a ajuda dos deuses, e isso constitui um ato de arrogância. Édipo, sabendo o que não era devido, passa para o território dos deuses, e a Esfinge se precipita e sucumbe porque era menos que um homem, pois Édipo foi capaz de decifrar seu enigma. Os deuses parecem deixá-lo descobrir tudo por si mesmo, e é apenas no final da estrada que ele descobre que não conseguiu. Os deuses fazem Édipo acreditar que ele age por si mesmo, mas na realidade são eles que o conduzem. Como ele acredita ser indiviso e assume que pode saber e fazer sem limites, uma verdade irrompe de fora e desconstrói ele e seu ambiente.
Há uma sequência que começa quando Édipo interpreta mal os deuses, acreditando que está fazendo certo; é aí que existe um certo ato de arrogância com relação a eles. É como se ele estivesse dizendo "eu sei o que Apolo queria me dizer", quando ele achava que sabia quem eram seus pais. O segundo passo seria a interpretação do enigma da Esfinge, e é quando seu excesso desencadeia seu fim. Nesta série, Édipo seria um homem que quer saber por si mesmo na ausência dos deuses. E o que ele constata, segundo a interpretação de Foucault (1976), é que a verdade se distribui. Você nunca será capaz de acessá-lo em sua totalidade.
Uma das questões fundamentais do sujeito humano é sobre sua origem, e inevitavelmente esta é o conhecimento alheio. A origem é o que os outros dizem ser a origem. Como ter certeza? Não é realmente possível, porque o que o eu tenta transformar a dúvida em certeza: é uma questão sobre a qual ele decide não se perguntar mais, fica alojado no fundo do nosso ser como algo em si, rodeado pelas afirmações que surgem da identificação que as outras fazem do sujeito: "ele se parece com o pai", "ele anda como a mãe", "ele tem o nariz da avó". Em algumas situações clínicas, quando esse ponto de certeza se rompe, ele é restaurado por meio de delírios de afiliação.
Outra das questões fundamentais é "você nasceu de apenas um ou de dois?" Se está na primeira forma, o mesmo nasce do mesmo; se está na segunda, nasce do outro (Lévi-Strauss, 1958). É assim que surge o conflito entre o semelhante e o estranho. Eu diria que a concepção solipsista exalta a própria consciência e a si mesmo - o outro deriva da mesma coisa -, e a concepção intersubjetiva coloca em primeiro plano a relação e o vínculo com o outro - isto é, o estrangeiro, a origem é o dois. Não seriam apenas duas posições filosóficas e epistemológicas, mas a exteriorização de duas formas de funcionamento mental. Pode assumir a forma da oposição que os gregos faziam entre philia e eros (Vernant e Vidal-Naquet, 1972). Philía era uma espécie de identidade entre os membros da família restrita. Para seu parente, cada um é seu alterego, um eu desdobrado ou multiplicado. Eros é o desejo amoroso dirigido a outra pessoa que não a si mesmo, seja através do sexo ou da filiação familiar.
No diálogo final de Édipo Rei, Jocasta, que a esta altura da tragédia já sabe quem é Édipo e, portanto, quem ela é em relação a ele, diz-lhe: “Infeliz homem, espero que nunca saibas quem és!". Ou seja, diz para você aceitar o não saber, o que é rejeitado pela onisciência e onipotência.*
*Steiner (1990) estabelece uma relação entre as formas de lidar com a verdade e os mecanismos mentais que surgem quando ela se torna intolerável. Em sua análise de Edipo Rey, ele descreve o mecanismo de evitar a realidade "fechando os olhos" e em Edipo en Colono ele descreve a retirada do contato com a verdade em direção à onipotência. Relaciona esta última com a culpa ligada ao ódio e à autodestruição desencadeados quando se depara com a ideia de que a mãe o traiu e de que o homicídio do pai a levou ao suicídio. Envolve identificação com figuras onipotentes, e é seu poder de dar identidade ou instalar medo que exige respeito.
Édipo adivinhou sozinho o enigma da Esfinge e assim produziu conhecimento como o dos deuses. Aqui está o seu excesso, a sua arrogância, que pode ir ao delírio desde que cumpra o desejo e o poder de quem tudo sabe e tudo interpreta. A verdade, quando individual, reside na parte dividida do sujeito e é inacessível à revelação, podendo apenas ser interpretada. Se o sujeito não aceita a cisão, nem aceita que seu conhecimento seja cindido e, portanto, parcial, e que outros tenham partes da verdade, então ele se coloca na posição de quem sabe tudo. Ele estabelece que a verdade vem de dentro dele, é dele mesmo, e essa forma de tratá-la produzirá aniquilação. Ele descarta a concordância do outro e sua presença inescapável, que sempre impõe um limite ao sujeito. Quando anula essa presença e recorre a uma ausência, em vez da simbolização, postula-se essa linha imprecisa entre a imaginação e o delírio sem limites. O desejo de saber por si mesmo, sozinho e não com outro, leva Édipo ao excesso. A verdade, como aponta Foucault (1978), é dividida e distribuída entre as pessoas: como se verá, em Tirésias há uma parte, em um dos camponeses outra parte, outro camponês tem a dele. Com essas peças, Édipo faz o que pode para acessar sua verdade, mas não sem antes mostrar aberta hostilidade em relação a elas.
Na tragédia, diante da invocação de Jocasta que tenta afastá-lo do conhecimento, Édipo desconfia e interpreta mal sua esposa, que acredita não querer dar a conhecer a diferença social referida à sua suposta origem: talvez seja de condição inferior ou mesmo filho de escravos. A seu modo, ele considera que eros deve se desdobrar com o outro, não com o alter ego. Mas qual deve ser a distância com esse outro? Além do pertencimento familiar, o social também estabelece quem são os semelhantes e quem são os estranhos.
As inscrições que devem constituir o inconsciente serão regidas pelo que a sexualidade da mãe inconscientemente marca no bebê com o seio, as carícias e o cheiro de seu corpo. Mas ela também registra, e não poderia deixar de fazê-lo e são inconscientes de si mesma, qualidades ligadas ao seu pertencimento social: modos de amamentar que significam modalidades de contato, de acordo com o mandato social que opera, seja através do superego ou as vozes do grupo que estabelecem as modalidades de abordagem e relação corporal, as opções nas cores das roupas, etc.
Voltando à tragédia, o central desse gênero é que toda situação tem dois sentidos e a interpretação depende do sujeito. É aí que o desconhecimento é mais doloroso, porque só mais tarde se saberão as consequências do que o herói interpretou e fez antes sem saber. Aí reside a diferença entre os humanos e os deuses. No mundo grego existe uma união muito estreita entre o rei e a cidade, razão pela qual se o primeiro prospera a cidade também, e se o rei é culpado de algum crime a cidade deve sofrer, como visto na praga que oprime o povo de Tebas como resultado do crime, do qual o culpado ainda é desconhecido, embora esteja entre eles.
Como interpretar a profecia do oráculo de Delfos? Você está se referindo aos reis de Corinto que Édipo acreditava serem seus pais? Então seria melhor ir embora. Mas ele se encontra em uma encruzilhada com aquele velho que o desafia. Édipo não sabe que é seu pai, então ele responde ao desafio e acaba matando-o. Não ter conhecido pode mais tarde liberá-lo da culpa, mas não da responsabilidade.
O sujeito é responsável por suas ações, também por seu desconhecimento e por sua interpretação das mensagens. Como ele interpretará a proibição paterna? Como a relação dele com aquele outro que é o pai? Aristóteles compara a cidade com o tabuleiro de damas e as peças em cada casa, cada uma em seu lugar. Alguém poderia interpretar esse posicionamento como um ato autoritário individual? Nesse caso, o sentimento de sujeição pode ser exacerbado e a rebeldia pode caber por desconhecerem que cada sujeito é porque ocupam determinado lugar. Será possível aceitar inicialmente a proibição do pai como outro, porque ele está no lugar do Pai, assim como os outros estão em seus lugares. Assim, na Hellas, o povo elege os tiranos, criados para impor mandatos em situações de emergência. Mas se a partir daí se estende mais no tempo, surge como se fosse um deus, fora do seu lugar em relação aos demais e que representa sempre um risco para a cidade-comunidade. Isso pode recorrer ao ostracismo, uma instituição muito interessante que surgiu em Atenas no final do século VI a.C. Por ela, eram separados aqueles que por terem ascendido excessivamente podiam aderir à tirania: o cidadão tinha que ser exilado por dez anos. A sentença foi pronunciada pela assembleia fora dos tribunais. Vernant e Vidal-Naquet (1972) explicam que as características arcaicas desta instituição se deviam ao sentimento de inveja e desconfiança religiosa, phthonos, em relação a quem sobe muito alto ou triunfa excessivamente, e esclarecem que foi expresso por voto exigindo pelo menos 6.000 eleitores.
Embora de acordo com essa interpretação se daria rédea solta a essa emoção básica, haveria uma apreensão expressa em uma frase de Sólon (Vernant e Vidal-Naquet, 1972): "Uma cidade perece por seus homens grandes demais". Nos termos de Aristóteles, esse homem, o tirano, seria como um deus entre os homens. No mito, os Argonautas não carregavam Hércules por causa de seu peso excessivo. Parece que não deve ser admitido na cidade quem, sendo homem, como os outros, abandona seu lugar no tabuleiro para subir muito alto, como os deuses, ou com muito peso, como o herói, ou o mais baixo , que designa como pharmakos, o bode expiatório, aquele com a mancha.
Édipo reunirá em si os dois aspectos: perdeu seu lugar nas gerações, ocupou indevidamente o de seu pai, por engano ao interpretar a profecia do oráculo deslocou Jocasta ao passar de mãe para esposa, engravidou-a onde o pai fez o mesmo antes dele. Aqui a identificação com o outro pode acabar destruindo a relação com ele, por querer ocupar o seu lugar.
Se o "político" em Aristóteles pertence à polis, a apolis deixou de pertencer à cidade e à comunidade dos homens, não aceita as suas regras do jogo embora possa acreditar que tudo é permitido, sem proibição; ele é mais poderoso que o homem, como um deus, ou é o mais degradado.
O ostracismo como prática social produz uma ausência diante de um excesso de presença registrado como ameaçador ao todo. Mas o tyrannos é erguido porque é necessária uma presença onde sua falta põe em risco a cidade. Essa análise do lugar dos tyrannos e dos tyrannís isótheos, tirania equivalente à divindade, contém uma consideração de poder retomada, como veremos, no personagem de Creonte.
O complexo de Édipo é uma estrutura da psique inconsciente e, como tal, pertence ao espaço interior do sujeito. Mostrou sua eficácia explicativa para uma análise inédita da sexualidade, a combinação do desejo e da proibição: as marcas maternas inconscientes e a sujeição aos lugares dados pelo pai.
Desejo incluir o poder como outra formação profunda que constitui o inconsciente e que se deve distinguir do sexual. Ao derrotar a Esfinge, tanto Jocasta quanto o trono foram entregues a Édipo por Creonte. Édipo é rei, termo que se traduz em grego týrannos, que por sua vez se refere ao poder do reino, neste caso Tebas. O tirano na Grécia, e também em Tebas, é eleito pelo demos em situações de urgência ou emergência (na ausência de alguém com conhecimento) e deve, portanto, ter uma duração limitada, como visto acima.
O complexo de Édipo marca fortemente a sexualidade, com o desejo erótico que pulsa no sentido "do ter" o objeto amado e o "ser" que, identificado com esse sujeito identificador, deve orientar-se no "fazer" com alguém de fora, fora do círculo familiar. O poder estabelece um “saber-fazer” e um poder de realizar uma ação que geralmente modifica o lugar e os outros, e seu possuidor é considerado mais forte ou mais dotado ou mais rico ou mais pesado, como Hércules. Em grego há uma distinção entre a inveja daquele que é mais poderoso ou mais rico, ou seja, aquele que está em uma situação social privilegiada ou poderosa, e a inveja no sentido erótico do termo. Como vimos, a palavra phthonos é usada em relação a alguém que se eleva muito alto e, por sua onipresença, se coloca no lugar de um deus, deixando de estar no lugar dos homens. As vicissitudes do erótico permanecem para estes. Há no tyrannos uma passagem do poder à onipotência, que é sempre um risco para si e para os outros.
O acesso ao trono deve ser diferenciado do acesso ao corpo da mãe, embora um possa ser simbolizado pelo outro. Poder e sexualidade não são a mesma coisa, embora o poder possa ser erotizado e a sexualidade possa ser investida de uma modalidade de poder sobre o outro. Mas isso não deve esconder a profunda diferença entre uma lógica de ligação, que é a que sustenta a primeira, e uma lógica pulsional, que é a base do segundo. A tragédia de Édipo, transmitida por Sófocles, e depois o complexo descrito por Freud, reúnem essa situação contraditória de alguém que é elevado à sua condição máxima, como "sua majestade o bebê" sempre presente, para então ser "destronado" (colocado ausente) quando é marcado seu lugar de sujeição ao mundo alheio. “Sua majestade” refere-se ao rei, aos soberanos, àqueles a quem é atribuída uma autoridade para gerir os negócios do reino, termo que na verdade é uma sinédoque para se referir ao grupo de outros que nele habitam. Para pensar o poder, sugiro incluir Creonte na estrutura edipiana e ampliar o complexo para abrir outro conjunto de emoções e mecanismos ligados ao poder, como a imposição pela necessária presença do outro.
Sófocles, tomando o mito de Édipo e construindo a tragédia, dá conta dessa cisão entre o homem e ele mesmo, quando não sabe que o mais poderoso e sublime e o mais baixo e desprezível são em si apenas cindidos. Em nível histórico, configurou-se como a cisão entre o nível humano e o nível divino a partir do momento em que ele e o homem foram considerados apenas um instrumento do divino. Com o nascimento da tragédia surge o critério da responsabilidade, e no humano, com a dissolução do complexo de Édipo, a culpa pelo dano infligido sem querer e sem saber, e a dor de ser responsável pelo que não se sabia e logo se soube.
Assim, é possível estabelecer uma diferença entre os três momentos: mito, tragédia e complexo. O mito pertence a um tempo de deuses, sem sujeito. A tragédia detém um tempo dividido entre homens e deuses que prenuncia a cisão do sujeito e o estabelecimento de uma interioridade. Na tragédia estão os campos da sexualidade, do conhecimento, do enigma e poder. Na tragédia de Édipo há duas dimensões: a sexualidade, que foi tratada por Freud e pela psicanálise em seus primeiros cem anos, e o poder, que espera ser desenvolvido daqui para frente. Em ambos há uma cisão em relação ao conhecimento: entre conhecimento e sexualidade e entre conhecimento e poder político. Há também um conflito entre um saber completo, o dos deuses, e um saber falhado, fruto da cisão constitutiva do sujeito. O nome Édipo, além de seu conhecido significado de "pés inchados", também está relacionado a oidas: "saber por si mesmo e por seus próprios olhos". O complexo de Édipo é herdeiro da tragédia e tem que ganhar ainda mais significado, pois há muito mais elementos da produção inconsciente em termos de saber e poder se considerarmos não só a relação de Édipo com Layo e Jocasta, mas de todos eles com Creonte. Para ser mais preciso: não apenas "com", mas "entre" todos eles. Em outras palavras, a própria tragédia é um enigma do qual se postula que não há um único sentido (a sexualidade), mas que ela está aberta a outros significados, divisões e produções inconscientes, a potência entre eles. Estamos em contato com as múltiplas dimensões do inconsciente.
INTRODUÇÃO PSICANALÍTICA*
*Apresentado na Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, e publicado na Revista de Psicanálise, "Cem anos do Complexo de Édipo", outubro de 1997
É uma experiência estética e emocional reler a carta 71 de 15 de outubro de 1897 (Freud, 1897), escrita há mais de cem anos:
Um único pensamento de validade universal foi dado a mim. Também descobri em mim a paixão da mãe e o ciúme do pai, e agora considero isso um evento universal da primeira infância como em crianças tornadas histéricas. (Isso é semelhante ao que acontece no romance de linhagem na paranóia: heróis, fundadores da religião.) Se assim for, compreende-se o poder cativante de Édipo Rei, que desafia todas as objeções que o intelecto levanta contra a premissa do oráculo, e entende por que o drama subsequente do destino teve que falhar miseravelmente. Nós nos rebelamos contra qualquer compulsão individual arbitrária [do destino], como aquela que é a premissa de [Grillprazer] Die Ahnfrau, mas a saga grega captura uma compulsão que todos reconhecem porque registraram dentro de si a existência dela. Cada um dos ouvintes já foi em germe e na fantasia tal Édipo, e diante da realização de um sonho aqui trazido à realidade objetiva, recua de susto, com toda a quantidade de recalque (esforço de despejo e personificação) que divorcia seu estado infantil de seu estado atual.
A psicanálise desenvolveu sua técnica, sua clínica e sua teoria a partir dos sintomas neuróticos e da descoberta da sexualidade infantil, cujas inscrições fundam o inconsciente e intervêm na constituição do aparelho psíquico. Ele descobriu que a sexualidade infantil, derivada dos desejos incestuosos com a mãe e da rivalidade e desejo de matar o pai, está incluída na estrutura do complexo de Édipo que forma o cerne do inconsciente reprimido. Era também o cerne do que estava reprimido tanto na vida cotidiana e consciente de seus pacientes quanto em si mesmo, ao qual chegava por meio da autoanálise. Partindo de quadros neuróticos típicos do cotidiano de sua época, Freud descobriu algo inerente ao sujeito humano. O reprimido induziu aquele "divórcio entre a infância e a vida atual" que produz o sofrimento neurótico. Quem ler atentamente a referida carta observará a busca das inscrições em sua memória e a notável dedução por meio de suas memórias e associações. Ainda é possível encontrar nesse período fundacional a busca dos "pontos de apoio reais" da história da criança por meio de perguntas à mãe, como um outro externo real, que logo desaparecerá das formulações de Freud para permanecer como a mãe interna. Laplanche (1992) destaca a presença desse outro, o adulto, que propõe um enigma à criança, e também lamenta seu desaparecimento da teoria psicanalítica ao tentar recuperá-lo em sua teoria da sedução originária.
Uma pergunta que se faz é quais são as bases do sofrimento um século depois, na era atual. Podemos apontar que, hoje, o sujeito também sofre a partir da presença avassaladora do outro que impõe seu sentido a si (assim como o faz em relação ao outro nas relações inconscientes de poder inerentes ao sujeito humano), e na medida em que seu excesso produz violência e tem como sintoma a anulação ou desagregação de sua subjetividade e do pensamento que tende a pensá-la. Como apontei antes, a sexualidade e o poder são inerentes ao sujeito humano, o primeiro fortemente marcado pela ausência do outro e pela marca do objeto interno, e o segundo, pela presença intensa do outro que relega o ausência do objeto. As relações de poder constituem outra dimensão do inconsciente, aquela relacionada com a presença do outro e com os fenômenos de imposição e que até agora tem sido insuficientemente considerada como uma formação derivada do sadismo, entendida nas pulsões sexuais ou como uma pulsão de domínio pertencente ao campo dos impulsos do ego. Se o estado das relações de poder é reprimido ou tem outra forma de existência deve ser estabelecido no futuro. Apresento aqui brevemente a questão do poder após recontar as vicissitudes de algumas das personagens com quem Sófocles desenvolve o ciclo tebano.
ÉDIPO RECONTADO DESDE CREONTE
Para apresentar as personagens que compõem esse ciclo, considerarei as três tragédias de Sófocles como uma só: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona. Esta trilogia trata do destino da linhagem dos Labdácidas - da linhagem de Lábdaco, pai de Layo que por sua vez foi pai de Édipo, que por sua vez foi pai de Etéocles e Polinices, Antígona e Ismênia. Tanto Édipo quanto seus quatro filhos nasceram de Jocasta, que era irmã de Creonte, esposa de Layo e mãe e esposa de Édipo (ver Tabela 1).
Edipo Rey é a tradução espanhola de Oidipus Tyrannos (Vernant e Vidal-Naquet, 1972).

Layo, casado com Jocasta, opunha-se a ter filhos porque, segundo uma das versões, o oráculo lhe havia previsto que morreria nas mãos de seu filho. Jocasta queria ter um filho, e para obtê-lo teve que embebedar Layo. É conveniente diferenciar entre o desejo de um filho e o desejo de um menino. No primeiro caso, trata-se de um desejo possível posto em jogo em um vínculo com outro em uma relação chamada "casal" onde se produz um terceiro, uma representação de vínculo, dando origem a um menino que se torna filho e que leva a que o homem-marido torne-se pai e a mulher-esposa torne-se mãe. Ocasionalmente, uma mulher ou um homem, por diferentes motivos, pode querer um menino como uma extensão de si mesmo. Nela, sustenta-se na fantasia do filho como falo e nele como sucessor de si mesmo, não modificado pelo vínculo de um casal. Nesse sentido, Jocasta impôs uma maternidade, não recebeu nem trocou uma sexualidade, colocando assim Layo em um lugar de não presença. Assim, ela engravidou de Édipo.
Podemos dizer que Jocasta é um tipo de mãe que quer um filho, mas não um marido ou companheiro. Em vez disso, pode-se dizer que ela não percebe o desejo de um marido ou de um filho, mas sim de ter um menino como seu, ou melhor ainda, como resultado da união com algum personagem dentro dela, ou pertencente a ela ou pertencente a seu ambiente familiar de origem. Ela não reconheceu aquela dupla passagem que marca, de um lado, o caminho a ser percorrido com o outro e que torna a constituição de uma subjetividade outra, própria do vínculo e, de outro, a passagem da família de origem (pai, mãe, irmãos, tios, etc.) à família matrimonial produzida por um casal e seus filhos. Às vezes, a persistência do primeiro atrapalha a construção do segundo, ou diante de rupturas de vínculos na família matrimonial, a família de origem ou um de seus personagens surge como doadora de sentido, sancionando a passagem do "ter" para " possuir", que também é uma forma de amor narcísico. A diferença entre "menino" e "filho" é que o primeiro, ainda não investido no parentesco, pertence a esfera interna da mulher ou de sua relação com personagens de sua família de origem, enquanto o segunda se dá pelo seu pertencimento à estrutura familiar, onde, como já disse, a esposa torna-se mãe a partir do menino que se torna um filho e o esposo que se torna pai. São denominações de lugares de parentesco cuja investidura é realizada pelos sujeitos que os ocupam; que por sua vez são investidos desses lugares embora cada um lhe dê sua própria forma.
Para os gregos, a posição de cada um diante de seus familiares é baseada em uma identidade e, como vimos no parágrafo anterior, esse seria o significado de philia, como se fizessem parte de um mesmo eu desdobrado. Por outro lado, eros, o desejo de amor, dirige-se ao outro diferente de si mesmo (Vernant e Vidal-Naquet, 1972). Se "ter" está mais próximo de eros, "possuir" está mais próximo de philia. Como veremos mais adiante, Édipo e Jocasta confundem philia com eros. Eles só vão descobrir depois e as consequências disso serão terríveis.
Edipo Rei começa com o pedido de um grupo de cidadãos de Tebas que imploram alívio a Édipo, já que a cidade está sendo devastada pelos males da natureza. Édipo é considerado, e se considera, o "mais poderoso dos homens", pois destruiu a divina Esfinge e salvou a cidade. Aqui “poder” equivale a saber fazer, a ter o conhecimento necessário para determinada situação, e seu excesso consiste em não questionar sua interpretação dos fatos. Ainda não surgiram as consequências de sua arrogância, esse excesso posto em jogo na adivinhação do enigma. Édipo pede ajuda ao oráculo, para o qual envia Creonte, seu cunhado, irmão de Jocasta, sua esposa na época da tragédia. Creonte sustenta uma presença, está ali, como se verá nas três tragédias, e se opõe à ausência de Layo, que não está desde o início. Ainda não se "sabe" que Creonte também é tio materno de Édipo.
O episódio da morte do rei fora suspenso devido à ameaça da Esfinge, cujo enigma foi resolvido por Édipo, que assim acedeu ao trono de Tebas (poder) e ao leito de Jocasta (sexualidade incestuosa), ambos dados por Creonte como um prêmio para quem realizou uma tarefa tão enorme. Em uma de suas conversas com Jocasta, Édipo lhe conta que em Corinto, onde morava com Políbio e Mérope, acreditando que fossem seus pais, alguém o chamou de "filho putativo"*. Cheio de dúvidas sobre sua linhagem, ele foi para Delfos e foi aí que, a pergunta de Édipo sobre sua origem, recebeu um enigma como resposta. Aqui a tragédia abre seu caminho: Édipo deve interpretar esse enigma e então saberá se estava certo ou não e deverá assumir a responsabilidade por suas consequências. É então que ele decide fugir e o destino o colocará no caminho de Layo, a quem acabará matando.
*Reputado ou tido como pai, irmão, etc., não o sendo", Dicionário da Real Academia Espanhola (1992).
O poder dos homens repousa no oráculo ou na ajuda dos deuses porque "nenhum homem pode forçar os deuses a fazer o que eles não querem fazer". Para estes, sua vontade é poder. Mas o ditado do oráculo é enigmático, então Creonte sugere consultar Tirésias, que, embora cego, possui um conhecimento incomparável sobre as coisas. Eles o trazem contra sua vontade. Questionado, Tirésias revela a Édipo sua participação no crime de Layo. A princípio, isso desperta sua reação irada e a persecutória experiência de ser objeto de uma conspiração de Tirésias ou Creonte. Édipo parece ter tido uma percepção intolerável para sua consciência, a da aspiração de Creonte ao trono e ao poder, que, como veremos, ocorre realmente com a sucessão de tragédias.
A violenta discussão entre Édipo e Creonte baseia-se no medo de que o cunhado esteja com sede de poder*.
*Em outra versão, a de Eurípides, atribui-se a Creonte um papel maior. Teria tramado uma conspiração contra Édipo, a quem considerava um usurpador. Pela morte de Layo, ele o cegou.
Mas Édipo se irrita principalmente com a intuição de sua responsabilidade no parricídio e suas consequências, a ascensão ao trono e à rainha, esta última com a prática do incesto. Édipo diz a Creonte:
Não são insensatos seus esforços para conquistar, sem a ajuda do povo e sem amigos, o verdadeiro poder que não pode ser obtido senão pela riqueza e pelo favor do povo?
Jocasta tenta mediar entre seu atual marido e seu onipresente irmão e ele sai com algum remorso. Assim começa o processo de dedução de Édipo sobre sua origem e a briga com Layo e o terrível engano pelo qual, querendo escapar da profecia do oráculo de matar seus pais, que ele acreditava serem Políbio e Mérope, no cruzamento das vias de acesso a Tebas, acaba com aquele velho que mata e que não era outro senão o próprio Layo, seu pai. Aos poucos ela reconhece sua própria origem em Jocasta "que teve um marido de um marido, e de um filho concebeu filhos".
Édipo cega-se para não ver em si "um pai ao mesmo tempo irmão e filho", e em Jocasta "uma noiva ao mesmo tempo esposa e mãe". Ele aniquila seus olhos tentando iniciar o caminho de Tirésias, cego mas sábio, e finalmente vai para o exílio. Creonte tenta separá-lo de suas filhas, mas ele pede e finalmente consegue o favor de ser guiado por elas. Assim conclui a primeira tragédia.
A segunda, Édipo em Colono, se desenrola entre Édipo, suas filhas, seus filhos e Creonte. Antígona é a guia e representa os olhos de seu pai, o guia. Eteocles, o mais novo de seus filhos, assumiu o trono de Tebas, expulsando seu irmão mais velho, Polinices, que buscava uma aliança com Adrasto, rei de Argos. Ele não entregou o governo da cidade a Creonte de acordo com a disposição de Édipo.
A luta agora é pelo poder de Tebas. Por que lutar? É uma questão que interroga a chamada “luta pelo poder”. Pode ter respostas de curto prazo, dependendo da situação. Do ponto de vista do poder político, luta-se pela autoridade que permite impor ações sobre os outros, ações que instituem uma subjetividade.
Édipo diz de seus filhos: "Mas eles, rejeitando o pai, queriam mais o trono, o cetro e o poder sobre a cidade." Ter domínio e controle sobre ela, decidir sobre o destino dos homens, na verdade sobre sua subjetividade, modificá-la e colocá-la a seu favor, porque também podem querer opor-se à sua instalação permanente nesse lugar de poder. Na verdade, o tirano na Grécia antiga é uma figura popular e é legitimado pelo consenso do povo em quem busca endosso ou adesão. O tyranno é instalado pela ação do conjunto do povo que o elege diante de alguma situação política ou social difícil, pois lhe atribui um know-how para tal situação. Se então decidir perpetuar-se naquele local, deverá continuar a obter o apoio de todos os cidadãos que o requeiram. Não bastaria o seu próprio desejo, senão fixar-se naquele lugar, sempre a partir da relação com os outros que assim marcam a inexorabilidade da sua presença.
Atento à profecia de que o local que continha os restos mortais de Édipo estaria protegido contra inimigos, Creonte tenta convencer Édipo em Colono a voltar com ele para Tebas a fim de torná-la invencível. Agora ele fala como os tiranos: ele diz que todo o povo quer o retorno, quando na realidade é seu próprio desígnio.*
*"...la tyrannis isótheos é a tirania que é igual à divindade, na medida em que é o poder absoluto para fazer o que se quer, de permitir tudo" (Vernant e Vidal-Naquet, 1972).
Creonte usa primeiro a lisonja, depois as ameaças, a humilhação do outro e, por fim, como último recurso, toma Antígona, sequestrada por seus soldados. Com tal procedimento, ele encarna um ato violento de desapropriação. Teseu, o rei de Colono, afirma em sua resposta que se alguém é sequestrado à força, os elementos de pertença a um lugar são violados: ao cidadão corresponde o direito atribuído pela justiça e pelas leis que regem a própria cidade para os pertencentes a ela. Se alguém pertence a um lugar, ele não pode ser tomado à força nem é possível apoderar-se violentamente de seus habitantes, e isso vale tanto para o poder estrangeiro quanto para o poder interno. Se assim fosse, uma parte da mesma população tornar-se-ia então estrangeira. Finalmente, Teseu resgata Ismene e Antígona e as devolve a Édipo. Mas outro terrível diálogo o espera, desta vez com Polinices, que lhe pede ajuda contra o próprio irmão. Isso desperta a ira do pai que expulsa o filho após se recusar a apoiá-lo. Édipo sente-se traído pelos dois filhos, pois aspiram ao trono de Tebas que, depois de abandonado, supostamente pertence a Creonte.
Édipo é chamado por Hades, o rei dos mortos, e ele vai para lá, mas ninguém saberá onde está seu corpo, exceto Teseu, a quem é confiado como sinal de gratidão por tê-lo recebido com suas filhas em Colono. Caso contrário, esse conhecimento seria usado para aumentar o poder de Creonte ou dos próprios filhos de Édipo, caso eles sucedessem e mantivessem o poder e o trono de Tebas. Mas mesmo sem os restos de Édipo, ambos permanecem mais firmemente nas mãos de Creonte. Assim conclui a segunda tragédia.
No início da terceira, Antígona questiona a sua irmã Ismena sobre o édito-decreto de Creonte que, diz ela, "o dono da cidade impôs a todos os cidadãos". O decreto incluia uma dupla penalidade para Polinices já morto: ele não deveria ser enterrado ou lamentado. A ele é negado terra e luto: é como banimento para os mortos. Antígona diz que o edito pode ser obedecido ou desobedecido. Ismene é a favor da obediência e advoga a submissão já que se sente impotente por ser mulher, e porque o poder é mais forte que ela. É inerente ao poder despótico mostrar que é mais forte do que quem não o tem, seja porque delegou a princípio, seja porque é fruto de desapropriação pela força, seja porque o mal parece ter mais certeza e eficácia em suas ações, além de prometer idealmente mais segurança para si e para o grupo social. Também transmite que é inútil resistir. No entanto, no início deve haver um certo consenso. Creonte entra em cena e enuncia um discurso demagógico endossando seu decreto: sua vontade parece expandir e abranger o cuidado da pátria e, portanto, dos cidadãos de Tebas. Na realidade, ele os toma como se lhe pertencessem, não lhes dando outro lugar senão aceitar o cumprimento de sua própria determinação. Afinal, não é a primeira vez que ele está no poder: ele estava no poder quando Layo morreu, e novamente depois de cede-lo a ele, quando Édipo, após descobrir o incesto e o parricídio, partiu para o exílio. E agora ele sucede os filhos de Édipo no governo. As razões para estar no poder dependem de cada circunstância, agora é por causa da traição de Polinices por ter marchado sobre a cidade. A posição ética de Creonte é a do Estado e de seus próprios valores depositados em sua investidura que, por força das circunstâncias e não de uma lei, são por ele considerados superiores aos valores do luto e das relações familiares. A posição ética de Antígona emerge daquelas leis eternas que se estabeleceram com o futuro humano: enterrar seus mortos, cuidar dos deveres familiares, valores de outra ordem em relação às coisas de Estado. Antígona tem uma relação harmoniosa com os seus ideais e as suas crenças e tem de os seguir porque senão o seu desconforto não lhe permitiria viver. As pessoas podem decidir se relegam seus ideais para se submeterem à situação e sobreviverem com o correspondente efeito de alienação ou, às vezes, defendê-los e arriscar suas vidas. Esta alternativa de natureza ética é o enquadramento da decisão de Antígona.
Na cena seguinte, um guarda entra para denunciar que Polinices estava coberto de cinzas e teve seu funeral. Creonte responde como Édipo quando lhe foi anunciada a mensagem reveladora de sua origem: acusa e culpa aquele que traz a notícia, jogada clássica do poder político quando condena aquele que traz o conhecimento e não aceita aquilo que se dá a conhecer por não se responsabilizar pelos infelizes acontecimentos que ocorrem em seu reino, no lugar tiranizado. Surge uma nova acusação contra os guardas e um novo significante: a corrupção, o poder do dinheiro de ir contra a lei. Ele vê uma ameaça na não submissão de alguns cidadãos. Tanto estes como os soldados devem obedecer, outro elemento invocado do poder. Outra é a posição ética de Antígona: não se calar diante da arbitrariedade e do desejo de Creonte. A menina diz:
Todos estes diriam que fiz bem, se o terror não lhes fechasse a boca; mas entre todas as inumeráveis felicidades da tirania, [Creonte] tem o direito de dizer e fazer o que quiser.
As diferenças podem surgir quanto aos critérios do que convém ou não a cada um ou nas ordens que regulam o sujeito, as famílias ou o grupo social. São três áreas diferentes entre si, a cujos princípios todos os sujeitos devem se submeter, pois possuem lógicas diferentes. Às vezes eles parecem desaparecer e outras vezes, seu modo de regulação e seu significado são transferidos de uma esfera para outra. Às vezes concordam e às vezes se opõem à fidelidade a si mesmo e à família. Outras vezes, a fidelidade à família e ao Estado pode ser contrariada. Às vezes quem detém o poder decide que a fidelidade social consiste em ser obediente aos seus desejos e não ao grupo regido pelas leis ou pelos princípios da família.
O noivo de Antígona é Haemon, filho de Creonte, que quando vai pedir ao pai o castigo dela, recebe a resposta de que como filho lhe deve submissão. Haemon responde com uma ideia simples e clara: ser pai não autoriza o exercício de tal poder. Creonte o adverte:
Convém que você guarde em seu coração a ideia de colocar a vontade de seu pai antes de todas as coisas.
Terrível sobreposição entre desejo e poder e entre o mundo familiar (relação pai-filho) e o mundo social (rei-cidadão).
Se os homens desejam ter filhos em sua casa, é para que possam vingar o pai de seus inimigos e honrar seus amigos tanto quanto a si mesmo.
Antígona não faz mais nada, mas o que é autorizado por ela é negado por outra. Ela é punida por se opor ao tirano. Isso pode enunciar uma mensagem contraditória, porque seu objetivo é manter o poder, em vez de permitir que cada cidadão pense, o que pode levar ao dissenso. Segue Creonte:
Aquele que é equitativo nos assuntos domésticos também se mostrará equitativo na cidade; mas aquele que insolentemente viola as leis e pensa em comandar seus patrões, não será elogiado por mim. É preciso obedecer aquele a quem a cidade tomou por seu dono, nas coisas pequenas ou grandes, justas ou iníquas [...] a obediência constitui a saúde de todos os disciplinados.
O diálogo entre Creonte e Haemon é soberbo. O filho diz que a cidade fala secretamente sobre o respeito que Antígona merece, só que o terror o impede de falar com Creonte, que toma o silêncio como aprovação e confirmação. Ele responde afirmando a superioridade da idade e da velhice. Segue-se um diálogo durante o qual Creonte muda de posição no discurso. Quando desqualifica o filho por ser jovem, diz-lhe que considere o que diz e não a sua idade, então Creonte tenta colocá-lo no lugar do dever e da obediência. Quando o filho lhe mostra que esse dever não é assim, ele recorre ao argumento de que a cidade não pode lhe dizer o que fazer quando estiver no poder. Aqui ele sobrepõe poder com conhecimento. E então ele o força a escolher entre ele ou Antígona. O jovem diz a ele que a cidade não pertence a quem manda nela. Creonte prioriza seu próprio poder, mas o jovem destaca o poder dos deuses, representados por Antígona. Isso significa que a lei constituída é mais unificadora e tem maior legitimidade do que a estabelecida pessoalmente.
A tragédia se precipita: Antígona é enterrada viva na tumba dos Labdacidae, onde a jovem se mata enforcando-se com uma corda. Ao vê-la, Haemon mergulha sua espada em si mesmo. Eurídice, a esposa de Creonte, ciente desses infortúnios, se mata. O arrependimento de Creonte, assim como a prudência, chegam, mas tarde; a tragédia já é irreparável.
Creonte puniu igualmente Antígona, que violou seu decreto e questionou seu poder, e Ismene, que obedientemente não participou da violação. Une-os não na ofensa, mas na irmandade. Assim termina a terceira das tragédias. Todos eles também podem ser pensados do ponto de vista da luta pelo poder entre a sucessão dos Labdácidas e Creonte, que encarna a tragédia do poder, porque põe fim a uma linhagem, a uma cadeia geracional. Aniquilar a linhagem de Labdacus e os descendentes de Layo. Creonte é identificado com os deuses e com a morte, o poder supremo, interrompe gerações e descendentes, que são uma forma de prolongar a vida.
Esse relato mostra o rigor do lugar que em trabalhos anteriores (Berenstein, 1976b, 1982, 1997) chamei de Quarto Termo a partir dos outros três que constituem o Édipo e que se referem aos lugares do filho, da mãe e do pai. Também o chamei de lugar do Representante da família materna ou avuncular, tomando essa denominação da antropologia. O termo vem do latim, avunculus: irmão da mãe. Esse lugar, cujo destino é a sua dissolução ou recalque, ganha sentido e reaparece de forma manifesta na estrutura familiar onde surge um membro com funcionamento psicótico. Também faz parte do superego - ideal do Eu. Convém, então, reconsiderar a estrutura do complexo de Édipo onde se jogam as dialéticas do desejo e da proibição, da sexualidade, da descendência e, até agora não levada em conta, do poder que se tornou absoluto versus a inércia social.
O Quarto Termo - o lugar de Creonte - supõe desestruturar para dar investidura ao lugar do Pai. Ao contrário, sua persistência sustenta:
a) um conhecimento ideal e universal, isto é, sobre tudo, sem falhas sobre a vida e a morte;
b) a continuidade e oposição às diferenças e à alienação entre mim e o outro, entre o masculino e o feminino, entre uma geração e a outra;
c) o valor e a hierarquia da endogamia e
d) a identificação com um eu ideal.
AS CONFIGURAÇÕES DO COMPLEXO DE ÉDIPO
O complexo de Édipo tem duas configurações, uma triangular, que podemos chamar de clássica, e outra quadrangular. O primeiro, por sua vez, tem uma expressão direta e outra invertida e é uma estrutura que corresponde ao self do infante, dada sua localização no parentesco e conforme sua condição de menino ou menina em relação aos pais. É um conjunto de posições e emoções derivadas do desejo e da proibição, bem como as indicações e prescrições correspondentes. Em sua forma direta, tais posições na criança derivam do amor pela mãe, a genitora do outro sexo, por quem ela é amada e com quem continua a relação amorosa inicial baseada na autopreservação. Também derivam da relação odiosa com o pai que antes tomava como modelo, investindo-se como sujeito na identificação original. Mas agora ele proíbe o acesso dela à mãe, por meio da ameaça de castração, pela qual sente que seu caminho até ela é impedido. É uma estrutura contraditória derivada, no menino, do desejo de continuar conservando o objeto oral inicial como objeto de amor, passando do seio para a mãe. O menino, diante da ameaça de castração, geralmente decide salvar seu pênis e abandonar sua amada mãe, deixando assim o Édipo. Na menina o caminho é mais tortuoso porque, no que diz respeito à mãe como primeiro objeto de amor, o caminho é semelhante ao do menino, mas depois se separa por querer o pai e querer ter filhos com ele, e aqui a mãe torna-se um primeiro e grave obstáculo. Ao querer ter acesso ao pai, ele entra no complexo de Édipo e segundo Freud não tem um motivo forte para sair dele. Isso explicaria o longo relacionamento da mulher com seus pais e sua família de origem. Com a dissolução ou naufrágio do complexo de Édipo, o superego estrutura-se decididamente, portanto diferente em homens e mulheres.
O que comecei acima como a história de Édipo, incluindo esse outro personagem que é Creonte, corresponde à descrição de outra configuração do complexo de Édipo, agora de quatro termos, unidos em uma estrutura na qual eles têm seu lugar.
I) O irmão da mãe que deve ser considerado como um lugar simbólico. Na tragédia de Sófocles é o lugar de Creonte, irmão de Jocasta, cunhado de Layo e tio de Édipo.
II) A mãe, Jocasta, irmã de Creonte, esposa de Layo e depois esposa de Édipo.
III) O pai, Layo, a respeito de Édipo; o marido se for em relação a Jocasta; ou o cunhado se for em relação a Creonte.
IV) Édipo que, sendo filho de Layo e Jocasta, é também sobrinho de Creonte.
A estrutura nem sempre é completa no que é observável mas não menos atual e exposta a diversas vicissitudes, que considerei como transformações de uma estrutura básica, com o propósito de localizar as diferentes estruturas psicopatológicas (Berenstein, 1990).
O Quarto Termo, o avunculado ou irmão da mãe, o tio materno, foi considerado por Stein (1966) como substituto do pai. Discordei dessa interpretação (Berenstein, 1982) porque em seu fundamento é um representante da mãe, que pode retê-la em sua mente como um ideal ou como uma relação efetiva, não permitindo o desenvolvimento do vínculo de parceria com o homem da mesma nem com o filho, que é o produto e deveria ser o representante dessa parceria no melhor dos casos. Quando o casal parental não tem sucesso, a criança pertence ao parentesco da mãe e sua família representada pelo irmão, pelo pai ou pela mãe. A destrutividade de Creonte está bem refletida nas tragédias tebanas. Hanly (1997) considera o avunculado como uma defesa contra a sexualidade edípica. Considerar o Quarto Termo como determinante da estrutura não é um detalhe menor ou uma filigrana explicativa, pois nos levou a ter uma outra concepção primeiro das relações familiares e depois das relações com os outros. Se a vida familiar for considerada a partir de uma conceção próxima do biológico, o papel central será determinado pelo lugar da criança e o seu estado de indefesa na relação com a mãe e o seio como fonte privilegiada de sobrevivência, que dará origem a as primeiras inscrições como a origem única da psique e, portanto, o lugar central da repetição, embora nunca idêntica, daquelas experiências ligadas à origem do eu. Aqui o complexo de Édipo clássico ocupa um papel central no desenvolvimento do self, e a busca do outro será a de alguém propício sobre quem será projetado um objeto da vida psíquica. Se a vida familiar for considerada como resultado da relação entre duas instâncias familiares que trocam pessoas, o acento se deslocará para a relação de casal e daí para a relação com o outro, e sua determinação passará pelo estrangeiro ao outro, outro, instituindo por sua vez uma outra origem.
O Édipo de quatro termos está no inconsciente, está na base da estrutura identificadora do eu, bem como nas raízes de sua identidade e pertencimento. Por isso, seu acesso em análise é relativamente tardio, e exige tolerância e conhecimento dessa modalidade por parte do analista para possibilitar a emergência do lugar do Quarto Termo, na verdade, a condição da própria estrutura. Tem suas próprias realizações na estrutura de parentesco, das quais resultam vários vínculos e patologias individuais.
Nos últimos anos, o Quarto Termo deu origem ao desenvolvimento de uma teoria psicanalítica do poder, que não existia exceto como uma aplicação da teoria sexual, onde foi considerada como um derivado da pulsão de dominação ou como uma formação do sadismo; na realidade, aquilo que é apenas um agregado. Como formação inconsciente, tem autonomia, amplitude, profundidade, regula nossos atos cotidianos e é emocionante o suficiente para dedicar os próximos anos a ela. Descreverei apenas alguns pontos no final deste capítulo.
O sofrimento neurótico surge de uma série de conflitos derivados tanto da angústia diante das próprias pulsões quanto da ação dos poderes que retêm o eu por meio de algum tipo de proibição. O sofrimento psicótico se desenvolve onde a relação com a mãe sofre forte interferência de seus personagens familiares internos e externos, que, estando no lugar dos doadores maternos que não o entregaram ao marido, ele não poderia incorporá-lo ao casal, formando uma rachadura profunda na estrutura do elo. Essa condição favorece uma alteração profunda nas identificações que estabelecem a subjetividade da criança. Seria consequência da não dissolução do complexo de Édipo de quatro termos, onde a onipotência e onipresença de Creonte não dá origem ao casal que posteriormente não pode dar lugar à função de pais.
A proibição costuma estar relacionada ao poder, mas o ultrapassa. Este será o assunto dos próximos parágrafos.
PROIBIÇÕES
A proibição do incesto é considerada por alguns autores como o paradigma da interdição e da lei* e tem sido relacionado ao lugar do Pai. A proibição, enunciada como um "não deves", vem tanto do social, onde circula como proibição de matar (Puget, 1992) e de roubar dos outros, quanto da família, onde aparece como proibição do incesto e matar o pai. Essas duas esferas devem ser consideradas como vinculadas a diferentes lógicas inconscientes e não derivadas de uma delas: a familiar. A proibição é menos clara no espaço interno do eu, pois no campo da fantasia, e por ação do desejo, o sujeito pode ser desobrigado de toda proibição. No entanto, este é exercido internamente - vindo do superego, que lhe confere um valor coercitivo, embora não obrigatório - por meio de uma ameaça de perda de amor, estima e apoio. É aí que se infiltra a transgressão, como forma de obtê-los, contornando, por meio da ocultação e do engano, a ação do superego, que depois retorna com maior severidade.
*Em sua crítica, Foucault (1976) vincula o poder ao que chama de concepção jurídica. Ele diz: "O poder é essencialmente aquilo que diz 'você não deve'. Parece-me que esta é uma concepção - é disso falarei mais tarde - totalmente insuficiente de poder, uma concepção jurídica, uma concepção formal de poder e que é preciso elaborar outra concepção de poder que, sem dúvida, permitirá uma melhor compreensão das relações que se estabeleceram entre poder e sexualidade nas sociedades ocidentais".
No que diz respeito à proibição do incesto, o seu exercício é inerente ao lugar do Pai em permanente oposição não só ao desejo da criança e da mãe, mas principalmente à voz daquele representante interno ou externo da esfera materna, a quem Eu chamei o Quarto Termo; aquele que nas tragédias de Sófocles é representado pelo onipresente Creonte e que não foi suficientemente levado em conta como objeto do desejo materno e cuja persistência é de motivações complexas, entre elas aquela apontada por Freud no complexo de Édipo da menina, onde dada a forma de se estabelecer, ocorre a não obrigatoriedade de sair de sua estrutura contraditória e dependente de sua família.
A seguir falaremos sobre três proibições pelas quais o pai deve afirmar e sustentar o "não deves". Você pode fazê-lo a partir do apoio dado às identificações, tanto com o lugar do Pai quanto com o do seu próprio pai, embora cada um construa uma maneira de fazê-lo. Devem contar com o vínculo “de” e “dentro” do casal, do qual serão os representantes. Haverá então:
I) Uma proibição originária que ele deve exercer (dizer e sustentar) como marido em relação à sua esposa (sobre a qual recairá um "não deves").* Como marido recebeu a filha de um pai ou a irmã de um um irmão (como Édipo recebeu Jocasta de Creonte), mas esse ato é incompleto, pois ele deve ter a coragem de "ajudá-la" a se separar dele e acompanhá-la ao seu lugar no casal. Aqui ele exerce uma proibição de retorno através da ameaça de abandono-solidão, com a qual a filha-irmã-esposa se encontra em posição contraditória. Se ela não consegue se separar de seu doador simbólico representado por seu pai ou irmão, ela retorna a ele, a quem permanece ligada com diferentes graus de adesão. Em casos extremos, ela será abandonada pelo companheiro e permanecerá presa no circuito incestuoso de sua sexualidade infantil, gerando uma fissura na estrutura relacional do casal, que futuramente poderá ser o lugar de seu próprio filho, para quem a rachadura será fatalmente atraente. Aqui está uma das pré-condições da psicose. Se a esposa deseja ocupar plenamente o seu lugar, deve abandonar aquele que foi (e em sua reminiscência sempre permanece) seu objeto amoroso original. Se aquele que ocupa o lugar de marido não puder respeitar essa proibição, seu lugar ficará esvaziado de significado e ele terá dificuldades para se firmar como pai posteriormente. Foi o que aconteceu com Layo em relação a Jocasta, por isso perdeu seu lugar, vida e trono. Assim também aconteceu com Édipo-marido em relação a Jocasta-esposa: por isso perdeu trono, esposa e olhos. Esse fracasso do filho pode estar baseado em uma identificação com o pai castrado e, principalmente, com um vínculo conjugal prejudicado desde a adesão-ligação incestuosa da mulher a esse personagem materno, representado nas tragédias de Sófocles, de Creonte.
*Nomes como "marido" e "esposa" designam o lugar de ambos os cargos do casal de tipo matrimonial, quer tenham ou não legalizado a sua relação perante o registo civil. Outras denominações podem ser adotadas de acordo com a cultura vigente.
II) Uma interdição de si mesmo, à maneira de uma ação reflexa que, a partir do próprio sujeito, se toma como objeto receptor através do qual renuncia à filha e aceita separar-se dela, "entregando-a" a outro homem, um doador cumprindo o mandato de conduzi-la até aquele que a "tomará" e a possuirá tomando o lugar de esposo. O não cumprimento ou fracasso destas proibições pode ter graves e variadas consequências: falhas na subjetividade, na constituição do casal ou vínculo familiar, bem como mais tragicamente o que se dá como a interrupção dos descendentes e da continuidade geracional. Esse foi o destino maldito de Antígona, aderida primeiro ao desejo de Édipo e ao seu próprio de ser como os olhos de seu pai, e depois destinada a se perder resistindo a cada mudança de lugar e permanecendo ao lado de Édipo assim como de seu próprio irmão Polinices.*
*Segundo Vernant e Vidal-Naquet (1972), cuidar dos mortos é sinal de fidelidade à philia familiar, única que pode dar continuidade à linhagem. É a identidade com os da própria família que faz parte do eu. Opõe-se à identidade social representada por Creonte, dos outros homens, das cidades. Nesta interpretação, Antígona permanecia encerrada na philia familiar e dela, sem se abrir ao Eros, ao “estrangeiro”, ao outro do desejo sexual.
Se o pai cumpre ambas as proibições, está habilitado a:
III) A proibição do incesto pela ameaça de castração dirigida ao filho em relação à mãe. Esta terceira proibição só pode ser estabelecida com base nas outras duas. Fazem parte das identificações o lugar da proibição (de exercício de uma lei ou de seu cuidado como legislador-mãe), bem como a modalidade de seu exercício. É por isso que o filho, ao acessar por sua vez o lugar simbólico do Pai, tem a possibilidade de reiniciar o circuito das proibições. A separação entre mãe e filha nunca é total e sempre deixa um resíduo que se manifesta como uma adesão da mulher-esposa-mãe à própria mãe ou família seguindo a linha da identificação feminina e do narcisismo. Para a menina, o corte exercido pelo pai impede o prolongamento de um vínculo que poderia se tornar sufocante-cortante. Dissemos anteriormente que a feminilidade gira em torno das vicissitudes da relação da menina com a mãe e também do vínculo mãe-irmão da mãe* e isso caracteriza o trânsito da menina pelo Édipo. Ainda que sua análise não seja objeto desta seção, certamente deverá ser incluída, a determinação do gênero com os significantes sociais que compõem o lugar sexual. A masculinidade, por sua vez, se desenvolve em torno da função do pai em oposição ao lugar do representante materno e a partir daí retoma a lei e sua transmissão, que passa de pai para filho. Do nosso ponto de vista, a masculinidade e a feminilidade também são instituídas do vínculo entre homem e mulher por meio de práticas de casal. Tem um caráter fundador, tanto quanto o desenvolvimento infantil.
*Esta denominação corresponde mais a um lugar simbólico do que a uma pessoa, embora ambas coincidam em alguns dos quadros psicopatológicos.
O pai não produz na menina o corte com a mãe com a claridade produzida no macho, e o tabu do incesto, embora vigente, não tem o caráter radical que ocorre, no melhor dos casos, no vínculo do filho com a mãe. Quando o futuro marido não exercer as duas primeiras proibições, os lugares de marido e mulher serão investidos a partir dos modelos da infância. Quanto à estrutura da família, para se tornar o Pai, além de ter exercido as duas proibições iniciais, terá que exercer a terceira, identificada com aquela exercida pelo próprio pai para separá-lo da mãe, com a qual ele terá retomado o ciclo e sua transmissão transgeracional inconsciente. Esta identificação dá-lhe a possibilidade de ocupar o seu lugar. São condições para a constituição de um mundo interno sem rachaduras e com seus personagens identificadores vinculados e articulados com a possibilidade de conflito que não altere severamente o sujeito.
NOTAS PARA UMA METAPSICOLOGIA DO PODER*
*Em espanhol temos a palavra "poder" tanto para designar uma ação, isto é, o poder, faculdade ou possibilidade de fazer, quanto para designar o domínio sobre algo ou alguém, sua posse ou o lugar para comandar ou executar algo. O mesmo vale para o francês "pouvoir", que é usado para ambos os significados. Por outro lado, em inglês, para o primeiro significado "ser capaz", "can" e com um sentido ligeiramente diferente "may" são usados. Para o segundo significado, "poder" é usado, com um sentido mais categórico de posse e autoridade.
Caracterizaremos o poder como as ações e experiências emocionais que constituem uma relação de imposição entre um sujeito e outro ou outros que leva a uma modificação do corpo e da subjetividade. Resulta de uma posição em lugares onde se estabelece a comunicação entre quem impõe e quem é imposto. A imposição pode deslocar-se para outras posições subjetivas: subjugador/sujeito ou dominador/dominado. Em primeira instância, "poder" é uma ação ou saber-fazer possível do sujeito em relação ao outro. Há um verbo: a mãe e a criança modificam reciprocamente seu corpo e sua subjetividade e a primeira supõe um saber-fazer e ter o direito de impor significados por meio de suas ações às do bebê, endossados de dentro de si, portanto, a partir do vínculo familiar, e do social. Menos é visto e dito sobre o poder e as ações do bebê sobre as da mãe.*
*A mãe amamenta o bebê que o recebe e o procura. Ambos estão ligados através do mamilo, representante do elo que organiza os dois lugares. Agora, a quem pertence esse mamilo? À mãe e ao seio, como sem dúvida se diria do ponto de vista médico, de uma concepção biológica do corpo, ou ao bebê que o gera com a boca, como as mães sabem por experiência e como? razão, o próprio bebê, até que se dobre ao ponto de vista convencional? Esse “bico” é o nome do elo que posiciona, liga, inclui e envolve a ambos e a partir daí impõe um sentido a cada um.
Na relação entre analista e paciente, as ações nas sessões também geram respostas somáticas e, no melhor dos casos, uma subjetividade e imposições típicas de uma relação de poder. Não me refiro ao que alguns autores chamam de "poder do analista" quando se abusa da transferência, pois nessa descrição o "excesso de poder" anula o caráter vincular do poder. Em todo caso, seria um uso individual do instrumento analítico que se privilegia vincular e abrangeria problemas técnicos e éticos que seria útil estudar a partir dessa concepção de poder.
Ao situar-se no lugar que permite agir sobre os outros e impor-se torna-se um investimento fixo do eu que ali aspira a perpetuar-se, o "poder" torna-se substantivo. torna-se excesso e muda de qualidade. O poder tem uma característica esquiva, omnipresente e também invisível na sua estrutura, não nos seus efeitos, sobretudo quando resulta de um excesso, sempre exercido por um ou vários sujeitos em relação uns aos outros. registrada, ela é visualizada a partir do consciente e por ação de encobrimento, como externa ao sujeito, como uma força dirigida contra ele, negando assim sua origem e seu caráter vinculante.lar, visto que é uma relação inconsciente de poder.*
*Embora pareça que o modelo de perda de subjetividade tenha sido a figura do "escravo" no passado ou seu equivalente nas versões atuais, a clássica assimilação do escravo a uma não-pessoa, a um objeto, não parece ser propriedade inteiramente consistente, alienável e sujeita ao senhor em sua dimensão de coisa. O reconhecimento de sua categoria humana se dá pelo critério da obediência, do dever de cumprir, mas esse reconhecimento passa despercebido se for considerado apenas a partir do mestre e não do vínculo entre ambos (Meillassoux, 1988). Senhor e escravo mantêm uma intersubjetividade que sustenta o poder do senhor, neste sentido é entendido como uma relação entre ambos embora, do ponto de vista do valor individual, um dos polos, o escravo, seja considerado por seu dono como não - pessoa, porque aquele é pensado não relacionado a este. É o efeito da anulação do vínculo ainda que a relação com a escrava gere a subjetividade do senhor (ver capítulo 2, parágrafo 3).
Um fenômeno notável do poder é que o sujeito geralmente não reconhece que o está exercendo, ou seja, dissociou uma parte de sua personalidade e uma posição em relação aos outros, que por sua vez o apoiam. Auxilia na formação de um pensamento feito de convicções (Berenstein, 1986), geralmente baseado no suposto bem dos "outros". As convicções são erguidas como defesa contra sentimentos de persecução ou culpa vinculados à não tolerância à desapropriação que pode caracterizar a imposição de uma subjetividade sobre o outro, desde que a relação de poder deixe de ser uma instituição da subjetividade e passe a ser destituinte do outro. No espaço social observa-se que os “outros” acima referidos são aqueles que aceitam essas ações, enquanto aqueles que se opõem ou pensam de outra forma, considerados estranhos, poderiam ser descartados, eliminados, destruídos após a suspensão das proibições sociais de roubar ou matar . Na medida em que isso equivale a não aceitar a subjetividade do outro e tentar reduzi-la a "causas superiores", podemos representar o mal assim: aquele que suprime o que é estranho ao outro para torná-lo idêntico ou semelhante ao seu próprio sujeito.
A partir da leitura de uma das tragédias de Sófocles, Edipo Rey, Freud destacou o acesso de Édipo a Jocasta, o incesto desconhecido/conhecido, a morte de Layo nas mãos de Édipo, e esses elementos forneceram o modelo para o novo desenvolvimento que a psicanálise fez da sexualidade infantil. A que agora proponho inclui, por uma questão de estrutura, um quarto personagem representado por Creonte. Quem acompanha o curso dessas relações nas três tragédias de Sófocles verá que elas também oferecem o modelo para pensar as relações de poder que se tornaram tirânicas. Entretanto, o poder não tem sido considerado principalmente por psicanalistas* e sim por filósofos (Foucault, 1976), sociólogos, economistas, historiadores e outros pensadores. Acho que o obstáculo está no ponto de vista psicanalítico que dá ao poder uma origem pulsional, uma representação derivada do sexual na primeira teoria pulsional, neste sentido tem sido ligada ao sadismo ou à pulsão de dominar. A pulsão é uma condição do sujeito ocupar um lugar de poder, mas sua determinação inconsciente é a partir do vínculo, das relações de poder. Se a determinação for pensada como individual, a base inconsciente sobre a qual ela repousa e de onde surge sua estrutura de vínculo não é captada, e seu significado é reduzido por não registrá-la no lugar apropriado: a relação com os outros. Seria conveniente discriminar a excitação produzida por dominar alguém dominado em uma relação de poder do prazer que deriva da pulsão sexual, da satisfação do desejo.
*No site da American Psychoanalytic Association (1998) foram encontradas 92 citações sobre poder, embora muitas delas não fossem psicanalíticas.
A relação subjetiva nas relações de poder deve ser diferenciada daquela que ocorre no sadismo e no masoquismo. Neste último, gera-se um vínculo intersubjetivo onde o outro não apenas desempenha um papel, mas é condição sine qua non para sua sustentação. Nas relações de poder, tenta-se impor suas próprias ações às ações do outro sem que este tenha que desaparecer, pois é condição para a sustentação do vínculo. No poder, apenas em sua expressão máxima e destrutiva, o outro deve manter seu lugar na relação, mas perder sua qualidade de sujeito naquilo que o caracteriza como outro, naquilo que oferece como estranho. Esta perda nunca deve ser total porque, nesse caso, perderia a sua natureza vinculativa. Talvez aí resida uma das condições para o posicionamento do carrasco em relação à vítima dessubjetivada que não deveria morrer para continuar conservando esse terrível personagem. Isso nunca acontece na relação sadomasoquista, em que um e outro reforçam as marcas de sua própria subjetividade nessa relação. O prazer não está em removê-los, mas em acentuá-los.